sábado, 7 de novembro de 2009

Caridade.

Era um rapazola, talvez uns treze anos. Desazo andava descalço pelas ruas da cidade e vestia-se com incúria. Não teve, nem si deu tempo, de puerícia sadia. A lata de cola, companheira de longos anos, sempre às mãos. Quando em vez a levava por volta das narinas e inalava-lhe os eflúvios que de dentro viam. O sestro tinha-lhe dominado por completo a vida e mesmo um fâmulo da loja que vendia a cola, penalizado aconselhara-o a largar o vício, mas, qual o que. Quanto mais falavam mais vontade tinha de se sentir entorpecido.
Alguns policiais, no começo, tentaram-lhe ajudar.
- Mano, da próxima te levo prá dormir lá com os outros meninos, na casa de recuperação. Volta prá tua mãe...
- Tem mãe, não. Tá bom assim. Pô, meu.
E saia correndo se embrenhando pelas ruelas do centro. Quando a noite chegava e o escuro vinha reunia-se aos outros andarilhos, numa pequena multidão de delinqüência latente. Buscavam até encontrar casas abandonadas ou no próprio centro ou no máximo na periferia do centro. Pequenos furtos, às vezes, assaltos em grupo os tornavam temidos por moradores locais.
Um dia o pequeno parou em frente a um restaurante e ardentemente desejou comer alguma coisa que cheirava bastante bem. Era cheiro de carne assando na brasa de uma churrasqueira. O ácido gástrico começou a fazer seu trabalho e a fome aumentou. Tentou entrar, mas, o segurança o expulsou prometendo uma surra se ele ousasse voltar. Quando se dispunha a sair, um senhor se aproximou e perguntou se ele queria comer alguma coisa.
- Quero, meu.
Daí em diante, todos os dias seguintes, até uma semana depois, o senhor pagava-lhe o prato de comida, o qual era devorado quase que instantaneamente pelo rapazinho. Numa segunda feira o velho perguntou-lhe se ele desejava morar em um sítio que ele possuía e que estava necessitando de ajudantes e que, se ele aceitasse, poderia também ir para a escola que ficava perto do terreno do sítio, na verdade uma espécie de chácara, com um lindo pomar na frente e que ladeava a estrada que terminava na frente da casa maior.
- Quero, meu.
A idéia era afastá-lo dos outros meninos viciados e também da facilidade da obtenção da cola. Empolgado pela conversa do velho o garoto foi morar na vivenda. Moraria em uma casa ocupada pelo caseiro e sua família. Era uma casa simples de madeira, mas, limpar e organizada. O caseiro tinha de tudo dentro da casa desde o fogão até a geladeira. Do lado esquerdo da casa, quase no meio do terreno entre ela e a casa do patrão, a grande jaqueira avultava no cenário. Mais embaixo, pois, um declive no terreno conduzia a um pequeno vale que alguns metros depois ascendia novamente na forma de um outeiro. Aí nesse lugar as ovelhas pastavam e passavam o dia inteiro, sendo recolhidas ao anoitecer, pelo caseiro, para o curral.
O garoto observara as brincadeiras das ovelhas e bodes soltos no campo. Marradas e corridas, numa alegria sem fim. Sentado na cerca que contornava o vale, logo na subida do outeiro, ele teve uma idéia. Foi lá perto da churrasqueira onde se guardava os espetos grandes e alguns médios. Cismou que os mesmos eram espadas e que as ovelhas eram monstros que deviam morrer e que ele estava ali justamente para proteger seu padrinho de tais horríveis criaturas. Escolheu um espeto grande e como se fora espada começou a trespassar algumas das ovelhas que acabaram por morrer. O caseiro ficara apavorado. O patrão só voltaria à chácara no final de semana e ele teria que conviver com o pequeno delinqüente até lá. Nenhum laivo de arrependimento apresentara o pequeno. Dormir nem pensar, pois, imaginava a encarnação do Jack, o estripador, ali perto a espreitá-lo. A noite foi longa, mas, logo ao amanhecer cavalgou, no malhado, um dos cavalos, até uns quatro quilômetros depois da saída da chácara, onde tinha uma vendinha, um pequeno armazém, uma taberna que vendia de quase tudo e que tinha um telefone público, posto ali pelo prefeito da localidade. Ligou para o patrão e relatou tudo inclusive o medo que estava de permanecer ali com tal criatura.
O patrão assim que soube e pode se dirigiu rapidamente até lá, mas, o garoto já tinha fugido e nunca mais foi visto, tanto nas cercanias de lá quanto no centro da cidade, onde o velho achava que ele voltaria para se encontrar com outros meninos afins. Não adianta querer endireitar o mundo, se forçar acontecem tragédias, pensou o velho e dirigiu-se ao carro para voltar a sua vida de sempre, inclusive o almoço naquele restaurante, onde todo dia procurava na multidão o rosto do menino que tentara ajudar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário