terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

D. Yvone.

Semana passada vi-me à frente, novamente, com a morte. Horas há que ela se faz muito presente, tão perto que a gente sente sua nefasta presença, sem ao menos vê-la, somente seu espectro nocivo ronda o ambiente, deixando nossas peles arrepiadas. Morreu uma amiga, mais de minha mãe e pai que minha, mas, tão próxima que emocionei-me tanto quanto no velório de minha mãe, dia extremamente triste para minha vida, d. Yvone Serejo de Carvalho. Vivi pouco ao seu lado, mas, sua história frente ao Colégio Batista Ida Nelson, sua participação na comunidade batista, exercendo uma espécie de liderança que nós, seus alunos, os que cresceram logo após sua geração, acabamos por admirá-la. Viajamos juntos, uma ou duas vezes, para Aruba. O imenso hotel, a praia, o sol do Caribe, os cassinos, o fascínio do charme holandês, presente na arquitetura, no desenho da cidade, deixaram-na perplexa com tal conjunto de entretenimentos. - D. Yvone, vamos ao cassino fazer uma fézinha... - Não, Alexandre, prefiro que você me leve ao meu apartamento. Está na hora de recolher-me... Tínhamos jantado juntos no restaurante do próprio hotel. - Está bem, dissera eu. Levei-a, de braços dados, em direção à torre que a hospedava, para que ela descansasse e no outro dia: às compras... Enquanto andávamos ali na imensidão do céu caribenho, totalmente aberto, com a lua e as estrelas a brilharem na imensa abóbada celeste, por ainda não existir nenhuma construção vertical, lembrei-me das aulas que ela elaborava, de História, talvez para que o colégio não parasse por falta de professor, e, uma em particular: a história se desenrolara num dia quente, como soe acontecer nas tardes de verão amazonense, e, um aluno, que trabalhara a noite anterior, no comércio pertencente a seu pai, repousara sua cabeça por entre seus braços, debruçado na carteira, e, acabara adormecendo. Ela observara todo processo sonolento do dorminhoco. Aquilo, representou à ela uma falta de respeito e consideração para com o mestre. Sem avisar arremessou o apagador, do quadro negro, acertando o dorminhoco no alto de sua cabeça. O rapazola acordou assustadíssimo. - Desculpe, d. Yvone... - Se você quiser dormir vá para casa. E, continuou o assunto. Ela era assim, rígida, ríspida, no interesse maior de seu trabalho, que resumia a vida do colégio, mas, por outro lado, extremamente sensível à vida dos mais necessitados. Quantas bolsas de estudo fora por ela distribuída na precisão verdadeira de pessoas necessitadas, principalmente entre os batistas. Quantas professoras e professores começaram suas vidas de mestres ali no dia a dia junto com ela, aprendendo não só a lecionar mas também a viver. Ali, em seu velório, tentei, com o espanador mental, em vão, afastar as lembranças que teimavam em ficar, a vida e alegria de viver que nela existiam, simplesmente existiam. Quando meu amigo, Vanias Mendonça usou da palavra para expressar seu pesar, relacionei tais eventos à vida de mãe e chorei, chorei pela vida extinta, chorei pela dureza da vida e da morte, chorei um choro de pena... Pena da não continuidade desses momentos mágicos da vida... Pena de sentir-se mais só... Pena de saber que a vida tem um fim, sim... Pena, pena...

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Éden.

O casarão, enorme, largo, ocupava quase toda a frente do terreno anterior e posteriormente, na mesma largura, o quintal, plano, terminando na mangueira que em sua época nos enchia de mangas, doces e saborosas. Na entrada uma escada central levava ao primeiro pátio. Uma goiabeira recepcionava. Na verdade eram duas, uma de cada lado da escada. Quando "carregadas" exibiam suas frutas, deliciosas, cobiçadas pelos transeuntes, que paravam, olhavam, desejavam, mas, seguiam o caminho com olhares traseiros. Desse patamar podia-se chegar a um outro, mais alto, ladeado por um pátio, grande, quase na extensão da casa e cuja altura correspondia ao "pé direito"dos andares. Esse "pé direito" era muito usado à época. Passamos, eu e minha família parte de nossa vida ali. A rua sempre muito movimentada, à época, sem carros, pouquíssimos ônibus e muitas carroças e bondes, nos dava certa segurança e era motivo de alegria, pois, por ali passava muitos catadores de lixo, e, nós, crianças, quando olhávamos os vestidos das velhas entrando entre as bochechas de seus glúteos, ríamos à beça: - Rapaz, olha aquela ali... Era uma com o vestido marcando excessivamente sua forma, e, ríamos daquela situação, não sei até hoje porque, mas, ríamos, eu e meu irmão mais velho. O dia era de brincadeiras. No quintal andávamos de bicicleta, brincávamos de manja-pega, de bolinha de gude, de esconde-esconde, de guerra, comíamos mangas, quando em vez, mamãe gritava que o lanche estava servido, depois a hora do almoço, e, brincadeiras de novo numa rotina incrivelmente feliz. Quando o sol começava a declinar e meu pai, já em casa, nos chamava, diariamente para o culto doméstico, uma reunião familiar que me enche de saudades daquela comunhão. Tentei dar continuidade, depois que casei, mas, o dinamismo da vida, as mudanças nos pensamentos e comportamentos dos filhos, impediram a maioria dessas reuniões, que acabaram por sucumbir à experiência. Depois dessa reunião, o jantar delicioso que mamãe fazia, acompanhado de sucos de frutas da estação, e, produto de suas mãos mágicas. O "picadinho", carne moída, se transformava em bolinhos de carne, acompanhados de molho vermelho, ou, o pirarucu, desfiado ou à milaneza, o guaraná gelado, sucos, água e sonhos de eternidade. Antes do jantar, à tardinha, quem olhasse, do pátio da frente da casa para o horizonte, na horizontalidade da cidade de então, poderia deslumbrar, em noites de lua cheia o por do sol mais lindo que já vi e um "nascer" da lua mais incrivelmente belo, essa transição entre o vermelho do por do sol e o amarelo da lua aparecendo deslumbrando-nos, nos enchendo de felicidade, uma portinha que nos deixava quase ver um Éden, perdido à tempos, dando-nos uma idéia de como seria estar no Éden. Lá longe o Rio Negro, negro como sempre, refletia as luzes de um de outro, tendo hora que ora era vermelho do sol poente, ora amarelo da lua nascente. Um barco solitário passava lá longe, no meio do rio, em busca de seu destino. Um laivo, quase borrão, em meio à paisagem deslumbrante. Nessa casa, cheia de espaços, nem tudo era luz. Ao anoitecer, quando a energia "ia embora", as sombras do lusco-fusco, dançantes nas paredes e chão da casa, eram assustadoras e produziam em minha mente de criança uma espécie de insegurança, um medo inexplicável de ser só, de sentir-si só, e, então, eu não gostava quando a noite vinha e a energia, força da casa, também não. Às vezes as sombras assumiam formas de seres viventes que de tão maus e assustadores me faziam gritar, apavorado e meus pais corriam para meu quarto a me socorrer, e, ficavam ali, do meu lado, até eu adormecer, certo da segurança e conforto deles ali comigo, com a certeza que quaisquer monstros seriam rechaçados porque não tinham lugar entre nós e eu dormia tranquilo. De manhã acordava cedo e pronto para as brincadeiras do dia. De noite as sombras, metáfora da vida em si, ensinando que nem tudo é paz e luz, e, que em algum lugar da existência o mal, latente, quieto, se deixado à vontade assume formas assustadoras.