segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A estrada.

Estava a quase cento e sessenta quilômetros por hora e a paisagem mal era absorvida por minhas retinas. O sol forte aquecendo a pista, a vontade de chegar logo me incentivava à corrida. Estava só voltando de uma viagem á Boa Vista. A estrada, bem asfaltada, me dava condições de segurança e então acelerei mais ainda. Engraçado como o tempo e o espaço se reduzem a nada nesta situação mesmo porque eles não existem, o que, transporta-nos a uma imagem fixa de uma estrada extremamente cansativa. Ao perceber que a mesmice da estrada cansa tanto quanto um exercício físico extremado diminuo a velocidade deixando-a em um patamar mais racional, mais controlável. Lá longe, no horizonte, onde a estrada afunila-se ficando quase imperceptível, uma sombra brilhante me deixa perceber que algo metálico caminha rapidamente em minha direção. Não há evidência de perigo. Não se sabe o futuro, o que vai acontecer no segundo depois do agora. A esperança é que não aconteça nada e realmente não acontece quando o bólido passa numa incrível velocidade, deixando em suas laterais um enorme vácuo produzido por seu deslocamento, o que me balança em demasia o carro. Concentro-me e deixo a adrenalina diminuir e com isso a calma se instalar novamente em meu corpo.
Fico lembrando-me do rosto sereno de meu neto Enzo, ainda dormindo, quando de minha saída de sua casa há algumas horas atrás, e, isto me conforta. A serenidade da criança, em sua total despreocupação da vida em seus cinco anos de vida. Muitas borboletas aparecem, agora, na estrada, ladeando meu carro, numa nuvem espessa e de uma beleza indescritível tal o conjunto e mistura de cores que forma um quadro espetacular. Sigo em frente por alguns quilômetros saboreando a visão das borboletas multicoloridas, amarelas, azuis, vermelhas, pretas, misturadas de verde, amarelo, vermelho, preto, numa pintura que extrapola a criatividade de qualquer pintor, a me indicarem o caminho correto e seguro da estrada. O que seria capaz de aglutinar tantas borboletas no mesmo lugar? O rasgado da estrada no meio da floresta funcionaria como um enorme corredor de vento e o cheiro do combustível e pneus dos carros serviriam de chamariz para elas? Não sei, mas, algo com certeza as atraem para ali. Lindo quadro que ficou registrado em minhas retinas.
Verifico que estou a meio caminho de casa e me sinto feliz de até agora estar no controle de tudo, é claro, na subjetividade direcional que os seres humanos costumam pensar de si mesmos como centro e controladores da vida, o que não é verdade, absolutamente.
São 758 quilômetros que devem ser percorridos entre as cidades de Manaus e Boa Vista. A estrada tem trechos de incríveis buracos, às vezes, tão grandes que um carro pequeno como o meu tem que entrar no buraco e sair de banda do outro lado. O governo promete a toda hora a reconstrução e o melhoramento da estrada, o que seria muito bom para os dois estados que requerem essa união, mas, ter-se-ia que alocar balanças controladoras de peso para os grandes caminhões que por ali passam e que são os responsáveis pela feitura dos enormes buracos. A estrada é linda e fascinante, mas, enfeada por esses buracos. Penso como seria bom se ela fosse repavimentada em toda a sua extensão facilitando o acesso e o transporte entre as cidades e também a migração das pessoas que a usam nesse ir e vir infindo das estradas.
Finalmente vejo uma placa me indicando que já estou no município de Manaus. A vontade de rever minha família aumenta e acelero mais o carro. 

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O presbio.


O presbio andava com dificuldade. Aqui e ali gizava-se uma repentina queda. O solo íngreme, e, ainda por cima esburacado certamente não era o ideal para uma caminhada matinal, mas, o bordão colocado aqui e ali indicava o caminho melhor a seguir. O foco dos óculos não era muito preciso. Dependendo do ângulo olhado ele via com clareza ou não. Às vezes tinha que apertar os músculos da face, ao redor dos olhos, para uma melhoria na precisão do olhar.
- Furunco, gritavam os meninos a sua passagem. Este apelido fora dado a ele em uma época na qual realmente apareceram diversos furúnculos em seu corpo e como eram muito doloridos o seu caminhar e movimentos dos braços tornavam-se notórios e alguns desses movimentos cômicos.
- É a mãe, respondia com certa dificuldade o velhinho, mas, com uma ira notável. As veias de seu pescoço, a jugular principalmente, se tornavam bastante visíveis, demonstrando todo desgosto provocado pela molecagem. A puerícia da molecada incomodava até passantes que raras vezes interferiam chamando atenção dos moleques – dizia ele preia fácil da molecagem.
- Estes, filhas das putas, pensava e vociferava o infeliz. É a mãe, gritava mais alto.
Quase todos os dias era isso. Aposentado, ele vivia com uma prebenda razoável e como não tinha descendentes, sozinho no mundo, como sempre vivera, dava-se essa obrigação descompromissada de caminhar todos os dias pela manhã. Agora os garotos da região souberam do apelido que no começo não incomodava tanto, mas, agora o machucava, por considerar falta de respeito, muito. Deviam estar estudando em vez de numa hora dessas já estarem na rua molecando.
O tempo passou e diariamente, impreterivelmente, a cena se repetia. Um dia a criançada, como sempre, esperava impaciente a passagem do velho. E nada. Esperaram e nada. No terceiro dia resolveram invadir a velha casa. Entraram pelo portão de barras e chegaram até a casa, esta bastante deteriorada. Os mais velhos trepados em caixas de madeira que ali estavam jogados, olharam pelo vidro da janela muito sujo e viram o ancião no chão de ceroulas e imóvel. Morrera na madrugada dois dias antes. Sairam correndo dali, gritando bem alto seus medos, numa incrível velocidade.
- Socorro, socorro, gritavam eles espavoridos pela visão da cena do velho morto ao chão.
O pensamento dos garotos, diante do susto, era comum. Nunca mais vamos apelidar ninguém. Nunca mais vamos implicar com os mais velhos. O velho se vingara e dera uma boa lição, com sua morte, nos meninos e suas danações.