domingo, 11 de agosto de 2013

Meu pai.

Homem simples. Desde a idade mais pueril conheceu a pobreza de perto. Sua mãe e seu pai do Maranhão, ela de Viana, ele de Arari, fixaram, primeiramente residência em Arari. Depois com o avançar do declínio econômico em todo nordeste, principalmente no Maranhão e Piauí, resolveram conhecer Manaus aqui no Amazonas. Ouviram falar das maravilhas que a borracha espalhara por aqui. Nasceu aqui em Manaus no ano da Graça de 1925. Homem do bem, ético, com elevada moral, conheceu, um dia a importante relação com Jesus Cristo e manteve-se íntegro por entre seus oitenta e oito anos de sua preciosa existência, logicamente, como todos os humanos cheia de experiências boas e também ruins. Momentos angustiosos. Momentos de extrema alegria. Dessas experiências cinco filhos lhe nasceram: Antônio José, o mais velho, Alexandre, Necil, Manoel do Carmo Filho e Samuel. Forte como um touro, um bull por entre os escombros de uma sociedade em franca decadência moral e ética, espelha, de imediato, a presença de Deus em suas ações na lida diária, assim, tornou-se exemplo para gerações, tanto na igreja batista, com o cumprimento exato do ser cristão, quanto na vida secular, no trabalho, em casa. Lembro de sua chegada em casa pós trabalho, minha mãe já com seu prato de comida, reservado para ele, quentinho, fumegando. Sempre a alegria das crianças. Tomava banho e logo após sentava-se à mesa, orava agradecendo o pão e comia. Almoçava depois de todos, pois, sempre já era bem mais tarde e os afazeres da casa ocupavam o tempo tanto de minha mãe quanto das crianças. Apesar de não possuir riquezas inventava a vida. Todos os finais de semana e em suas férias íamos para os mais variados balneários, fazendas, sítios, enfim, não ficávamos sem estarmos em contato com a natureza. Grande aprendizado. Os natais e entrada de ano novo eram espetaculares. Ele não poupava criatividade. Na igreja participávamos da encenação do nascimento do menino Deus. Cantávamos e lá estava ele com seu olhar aprovador para cada um de seus rebentos. Digo cada um porque todos seria generalidade coisa que em questão de relacionamento, seja em casa seja na comunidade que teve o privilégio de mais conviver com ele, a primeira igreja batista de Manaus, ele não admitia. É de sua natureza, implicitamente, a questão ética. Sofre com a deterioração dos valores sociais. É pela vida, nunca pela morte, em nenhum sentido. A tentativa de santidade é expressão de sua vida, sofrida, alegre, sempre com o foco em Deus, sua meta maior. Por tudo isto e mais o que não é isto, meu pai, Manoel do Carmo Neves Silva, agradeço não só a minha vida, mas, o privilégio de conviver com você, de esperar sempre o abraço e cumprimento carinhoso: - E aí, rapaz?... Feliz dia dos pais...Rapaz.

sábado, 6 de abril de 2013

Livro - O abaité ou o Tio Sujo.


Realmente era feio. Subia a rua de paralelepípedo carregando sua trouxa, alocada às costas. Era uma cena impressionante, pois, a trouxa era amarrada em um cabo de vassoura, de madeira, e, depositado aos seus ombros, e, ele se vestia com um manto pútrido de pano de saco, negro pelo uso, oleado e com uma aparência sem imitações. Normalmente as crianças da rua estavam ou tinham acabado de sair às calçadas para brincarem em conjunto. Lá pelas tantas um ou outro gritava lá vem o tio Sujo. Era uma correria para se esconder, mesmo nas casas alheias, tal o medo que tal criatura impunha. Não usava sandálias ou sapatos. Descalço andava o dia todo, mas, naquela hora sem falta corria para o canto de nossa rua, Leonardo Malcher, confluência com a Ferreira Pena, para depois de agasalhar seus pertences em lugar seguro, não de roubo, mas, de água, se por um acaso chovesse, ele abria os braços os deixando como se estivera numa cruz e arremessava seu corpo contra o muro da casa de esquina. Várias e várias vezes. Era um exercício diário de autopunição. Com o tempo o muro deixou-se ficar com suas impressões. Quem olhasse saberia de haver ali uma espécie de cruz. Ele não se martirizava somente se jogando, de costas com os braços abertos, não. Os carros passavam e todos olhavam para o tio Sujo a se esmurrar no rosto com toda força. Eram socos bem dados, certeiros, que durante o tempo de uso acabou por deformá-lo. O nariz largo de nascença agora era bem mais, sem a proteção da cartilagem do meio, como se houvera um afundamento bem no meio do seu nariz. Passava horas e horas ali naquela punição que parecia não ter fim.
Passei, eu mesmo, imaginando o que levara o tio Sujo, como os meninos o chamavam a cometer estes desatinos contra ele mesmo. Que tipo de culpa carregaria um homem cujo destino era de, como os monges da idade média, opus Dei, penitência e mortificação corporal? Que havia de tão horroroso naquela vida a ponto do flagelar-se ser uma normalidade diária?
Muitos anos se passaram e a molecada na rua, lá pela tardinha a gritar:
- Lá vem o tio Sujo, mistura de monstro e de ser humano, na essência necessitando amor, que pelo que transparecia a vida houvera negado a ele.
Nunca mais o vi, ou ouvi falar dele. Um dia desses passei de carro pelo local. Pareceu-me ver ainda a marca da cruz, apesar da pintura do muro. Não sei se era mesmo ou se fosse pintura de minha imaginação.
Acelerei o carro. O muro ficou, testemunha imóvel, inalterável, do sofrimento daquele homem.
- Lá vem o tio Sujo, acelerei mais o carro.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Livro - A Introdução.


Queria ter o dom, magnífico, dos grandes escritores. Aqueles que lapidam um texto como um escultor lapida uma pedra ou madeira. Há aqueles que esculpem em madeira de lei, boa madeira, dura, inflexível, e, com dores criam maravilhosas odes, textos incríveis feitos com enorme facilidade; também há os que produzem em madeira menos nobre, não requerendo para isso instrumentos sofisticados, e, na simplicidade do manejo, com dificuldade conseguem escrever mesmo na maciez do objeto. Sou dos que manejam textos como que esculpindo em madeira mais leve, menos nobre, mais fácil de manejar, aquelas que de tão flexível me deixam esculpi-las com canivetes ou mesmo com instrumentos mais rústicos, sempre necessitando de uma musa, uma o que de linda faça-me sonhar sonhos que acabam por vir a tomar forma, então, escrevo escrita moída e remoída nos sofrimentos e alegrias da vida.
Os caminhos tortuosos da vida, sempre dinâmicos, me fazem sentir uma espécie de, ao mesmo tempo, ansiedade, por momentos há vir, e, nostalgia por momentos que já foram, já passaram, e, que, certamente não voltam mais deixam-me com saudades e vontade de retornar à época, e, às vezes retomar caminhos que poderiam ter sido melhores, onde a escultura poderia ter sido melhorada. O tempo em sua inexorabilidade, em sua ida e vinda, me deixa duas únicas alternativas de tempo: o passado e o futuro. O presente já não é nesse momento e só existe como forma de generalidade, por exemplo, nesta época presente, diz-se de uma década, de uma geração, de um século, mas, na realidade, pontualmente ele não é, não existe por já ser passado, como em Cantão que ao descrever o percurso de uma flecha disparada de um arco na posição A avança lentamente e cada milímetro ganho, na direção B, mostra o presente, o passado e o futuro, onde o presente é tão passageiro que não existe tão real quanto o passado e o futuro.
  Conheci minha musa há tempos atrás. Pueril época onde os pensamentos eternizavam-se projetando para o futuro formas esculpidas, intactas, viajando no tempo e nunca si desgastando; onde o tempo jamais teria acesso e nunca a  corrosão, a destruição chegaria, alcançaria-a. Essa etéreo ser, nunca corrompido, como Dulcinéia do Quixote, sempre linda, sempre esperando, sempre lá no lugar intacto, maravilhoso, eterno de minha mente. Ela me persegue até hoje, e, lá-se vão sessenta e tantos anos, e, ela em sua paciência infinita espera, linda, num tempo irreal, incompreensível que não existe.
A essa musa, inspiradora de tudo na vida, dedico esta obra, produto desse encantamento, desse pensar, projeção de todos os momentos que tenho vivido, seja observando o ser humano em seu comportamento, seja vivenciando os mesmos vezos humanos, os mesmos esteriótipos, os mesmos "vivendo como nossos pais...", de Belchior, cujo conteúdo tem de tudo, desde prazer até tédio, ócio, trabalho, ciúmes, ódio, mas, nunca descartando o Amor em suas manifestações divinas, sem esconder a veleidade de acerto, sem ter medo de sentir saudades.
À Socorro, minha esposa e companheira, lá se vão tantos trinta e nove anos de convivência, de dor compartilhada, de venturas mil, de acertos e erros, da compreensão de que a vida é "assim mesmo", de sonhos frustrados, de sonhos realizados, de um por vir delicioso e maravilhoso, de cheiro de terra molhada, de ventos ou brisas do rio, de cheiro de flores, de choros contidos ou não, de querer fazer sem poder, de realizar impossibilidades, enfim, de simplesmente ser. A esta criatura, de rara inteligência, de raro compreender, de raro e maravilhoso conviver, por suas posições ante as desordens próprias de homens, que vão desde a desarrumação da casa, lugar intocável para as mulheres, até o emocional carente, sempre volúvel, sempre à procura não sei de que, mas, sabendo seu lugar na História e no mundo, dedico total, meu ser e este pequeno livro de anotações.
Aos meus filhos, Alexandre Filho, Maysa e Gabriela, Gabi, sempre intensamente dedico meu coração e minha vida como tenho procurado fazer até agora, e, aos meus genros Leonardo e Heitor que entraram para o "time". Por final à Natássia, minha nora, única, a quem tenho profunda afeição e pela qual tenho dedicado, com honra e prazer, parte de minha vida.
Aos meus netos, Alexandre Neto, Enzo, meu pequeno e eterno jogador de futebol, talento indiscutível, e, ao Davi, filhos de Natássia. Também aos filhos de Gabriela: João Gabriel e Guilherme, que ainda bebê vai ganhar um irmãozinho ou irmãzinha, tão carinhoso...

terça-feira, 26 de março de 2013

O Natal, Sempre


O tinir dos sinos, alegremente anunciando o dia de aniversário do menino Deus, transformava o dia chuvoso em dia menos triste, tristeza que o dia chuvoso impinge às pessoas, fazendo-as mais reflexivas, mais sensíveis, talvez, porque lembrem de suas infâncias, de seus pais, de parentes, de amigos, de situações de alegria no mesmo período de alegria ou mesmo alguma comparação com pessoas menos aquinhoadas pela fortuna, tristezas de não poder ajudá-las.

Lá longe um cachorro uivava chamando sua prole, recém-nascida. Lá longe, na confluência da rua principal, um sujeito grandão, segurando um violão, tentava cantar músicas da época. Noite feliz, noite de amor, o cantor cantava e gesticulava imitando a letra. Na palavra amor ele fazia uma espécie de coração com os dedos das mãos, um coração não muito exato, mas, um coração, uma mensagem de amor.

Na igreja da praça, o pastor, confortável em seu púlpito, falava do grande amor de Deus em mandar seu primogênito para morrer por seu e os nossos pecados. Amor maior não poderia existir. Não um amor superficial, desses que existe, banalizado pela repetição sistemática das pessoas:

- Amor, te amo. Te amo... E, repetindo sempre, banaliza, nivela a palavra com outras ditas constantemente e que perdem a profundidade inicial do significado.

O Amor que o pastor referia-se era um que personalizava o próprio Deus. Um Amor transcendental. Um Amor ilimitado, um que rompe e quebra o tempo e o espaço, algo incompreensível para a mente humana.

Os pequenos corriam em todas as direções e lugares, preenchendo, aos gritos, os espaços, dando uma nova conotação ao ambiente, enchendo-o de alegria. Para eles não importa o grau de sucesso que as pessoas  adultas atingiram, mas, mesmo com a ascensão pessoal completa, os adultos não passam de amigos reais, amigos que sempre estão e estarão à suas disposições, independente do que possa acontecer, mesmo considerando as novas amizades, os novos ambientes a conhecer, nunca deixando de lado os sentimentos mais antigos, sólidos amigos, nunca voláteis, o que lhes dá, com certeza uma solidez na vida, portos de esperança, de amizade e de fé.

- Tio, dizia um deles olhando para mim. Vou embora daqui. Não fico mais com você. Quero ir para outra cidade e ficar com novos amigos...

- Fique aqui comigo, pois, você já me conhece e pode ficar mais estável. Nunca troque os mais antigos por outros mais novos...

- Tenho que ir agora. Fique por aí... Sinto muito...

- Não vou mais esperar você, vou fazer outras tarefas, disse fingindo dureza na voz.

Era natal. Os sinos continuavam a tinir anunciando novo natal. A tristeza tomou conta do meu coração, mas, entendi que sempre o comportamento do homem fora assim: uma vez com você até poder voar, como passarinho que voa e voa por si só, e, você sempre ermitão, solitária vida, eterno deserto abrasador, buscando vida em abundância, vida de qualquer maneira amorosa, vida cheia de esperança e de fé num Éden, uma hora melhor. Natal das crianças, natal dos adultos, natal do menino Jesus, natal de Amor.

Feliz Natal, este de todos os dias.

Feliz Natal, este de todos os anos.

Feliz Natal, este de todos os adultos.

Feliz Natal, este de todas as crianças.

Feliz Natal, Alexandre Neto, Enzo, João Gabriel, Guilherme, Davi, e, o que vem aí, Feliz Natal...

Alexandre Filho e Natássia, Heitor e Maysa, Leonardo e Gabi, Deus tem nos abençoado ricamente, individualmente e como famílias, Feliz Natal, há um anjo que proclamou o primeiro natal e que agora, hoje proclama o nosso Natal, encontro com Deus, encontro, tão gostoso, em família.

Feliz Natal, este que passou, este que é, e, este que virá.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

D. Yvone.

Semana passada vi-me à frente, novamente, com a morte. Horas há que ela se faz muito presente, tão perto que a gente sente sua nefasta presença, sem ao menos vê-la, somente seu espectro nocivo ronda o ambiente, deixando nossas peles arrepiadas. Morreu uma amiga, mais de minha mãe e pai que minha, mas, tão próxima que emocionei-me tanto quanto no velório de minha mãe, dia extremamente triste para minha vida, d. Yvone Serejo de Carvalho. Vivi pouco ao seu lado, mas, sua história frente ao Colégio Batista Ida Nelson, sua participação na comunidade batista, exercendo uma espécie de liderança que nós, seus alunos, os que cresceram logo após sua geração, acabamos por admirá-la. Viajamos juntos, uma ou duas vezes, para Aruba. O imenso hotel, a praia, o sol do Caribe, os cassinos, o fascínio do charme holandês, presente na arquitetura, no desenho da cidade, deixaram-na perplexa com tal conjunto de entretenimentos. - D. Yvone, vamos ao cassino fazer uma fézinha... - Não, Alexandre, prefiro que você me leve ao meu apartamento. Está na hora de recolher-me... Tínhamos jantado juntos no restaurante do próprio hotel. - Está bem, dissera eu. Levei-a, de braços dados, em direção à torre que a hospedava, para que ela descansasse e no outro dia: às compras... Enquanto andávamos ali na imensidão do céu caribenho, totalmente aberto, com a lua e as estrelas a brilharem na imensa abóbada celeste, por ainda não existir nenhuma construção vertical, lembrei-me das aulas que ela elaborava, de História, talvez para que o colégio não parasse por falta de professor, e, uma em particular: a história se desenrolara num dia quente, como soe acontecer nas tardes de verão amazonense, e, um aluno, que trabalhara a noite anterior, no comércio pertencente a seu pai, repousara sua cabeça por entre seus braços, debruçado na carteira, e, acabara adormecendo. Ela observara todo processo sonolento do dorminhoco. Aquilo, representou à ela uma falta de respeito e consideração para com o mestre. Sem avisar arremessou o apagador, do quadro negro, acertando o dorminhoco no alto de sua cabeça. O rapazola acordou assustadíssimo. - Desculpe, d. Yvone... - Se você quiser dormir vá para casa. E, continuou o assunto. Ela era assim, rígida, ríspida, no interesse maior de seu trabalho, que resumia a vida do colégio, mas, por outro lado, extremamente sensível à vida dos mais necessitados. Quantas bolsas de estudo fora por ela distribuída na precisão verdadeira de pessoas necessitadas, principalmente entre os batistas. Quantas professoras e professores começaram suas vidas de mestres ali no dia a dia junto com ela, aprendendo não só a lecionar mas também a viver. Ali, em seu velório, tentei, com o espanador mental, em vão, afastar as lembranças que teimavam em ficar, a vida e alegria de viver que nela existiam, simplesmente existiam. Quando meu amigo, Vanias Mendonça usou da palavra para expressar seu pesar, relacionei tais eventos à vida de mãe e chorei, chorei pela vida extinta, chorei pela dureza da vida e da morte, chorei um choro de pena... Pena da não continuidade desses momentos mágicos da vida... Pena de sentir-se mais só... Pena de saber que a vida tem um fim, sim... Pena, pena...

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Éden.

O casarão, enorme, largo, ocupava quase toda a frente do terreno anterior e posteriormente, na mesma largura, o quintal, plano, terminando na mangueira que em sua época nos enchia de mangas, doces e saborosas. Na entrada uma escada central levava ao primeiro pátio. Uma goiabeira recepcionava. Na verdade eram duas, uma de cada lado da escada. Quando "carregadas" exibiam suas frutas, deliciosas, cobiçadas pelos transeuntes, que paravam, olhavam, desejavam, mas, seguiam o caminho com olhares traseiros. Desse patamar podia-se chegar a um outro, mais alto, ladeado por um pátio, grande, quase na extensão da casa e cuja altura correspondia ao "pé direito"dos andares. Esse "pé direito" era muito usado à época. Passamos, eu e minha família parte de nossa vida ali. A rua sempre muito movimentada, à época, sem carros, pouquíssimos ônibus e muitas carroças e bondes, nos dava certa segurança e era motivo de alegria, pois, por ali passava muitos catadores de lixo, e, nós, crianças, quando olhávamos os vestidos das velhas entrando entre as bochechas de seus glúteos, ríamos à beça: - Rapaz, olha aquela ali... Era uma com o vestido marcando excessivamente sua forma, e, ríamos daquela situação, não sei até hoje porque, mas, ríamos, eu e meu irmão mais velho. O dia era de brincadeiras. No quintal andávamos de bicicleta, brincávamos de manja-pega, de bolinha de gude, de esconde-esconde, de guerra, comíamos mangas, quando em vez, mamãe gritava que o lanche estava servido, depois a hora do almoço, e, brincadeiras de novo numa rotina incrivelmente feliz. Quando o sol começava a declinar e meu pai, já em casa, nos chamava, diariamente para o culto doméstico, uma reunião familiar que me enche de saudades daquela comunhão. Tentei dar continuidade, depois que casei, mas, o dinamismo da vida, as mudanças nos pensamentos e comportamentos dos filhos, impediram a maioria dessas reuniões, que acabaram por sucumbir à experiência. Depois dessa reunião, o jantar delicioso que mamãe fazia, acompanhado de sucos de frutas da estação, e, produto de suas mãos mágicas. O "picadinho", carne moída, se transformava em bolinhos de carne, acompanhados de molho vermelho, ou, o pirarucu, desfiado ou à milaneza, o guaraná gelado, sucos, água e sonhos de eternidade. Antes do jantar, à tardinha, quem olhasse, do pátio da frente da casa para o horizonte, na horizontalidade da cidade de então, poderia deslumbrar, em noites de lua cheia o por do sol mais lindo que já vi e um "nascer" da lua mais incrivelmente belo, essa transição entre o vermelho do por do sol e o amarelo da lua aparecendo deslumbrando-nos, nos enchendo de felicidade, uma portinha que nos deixava quase ver um Éden, perdido à tempos, dando-nos uma idéia de como seria estar no Éden. Lá longe o Rio Negro, negro como sempre, refletia as luzes de um de outro, tendo hora que ora era vermelho do sol poente, ora amarelo da lua nascente. Um barco solitário passava lá longe, no meio do rio, em busca de seu destino. Um laivo, quase borrão, em meio à paisagem deslumbrante. Nessa casa, cheia de espaços, nem tudo era luz. Ao anoitecer, quando a energia "ia embora", as sombras do lusco-fusco, dançantes nas paredes e chão da casa, eram assustadoras e produziam em minha mente de criança uma espécie de insegurança, um medo inexplicável de ser só, de sentir-si só, e, então, eu não gostava quando a noite vinha e a energia, força da casa, também não. Às vezes as sombras assumiam formas de seres viventes que de tão maus e assustadores me faziam gritar, apavorado e meus pais corriam para meu quarto a me socorrer, e, ficavam ali, do meu lado, até eu adormecer, certo da segurança e conforto deles ali comigo, com a certeza que quaisquer monstros seriam rechaçados porque não tinham lugar entre nós e eu dormia tranquilo. De manhã acordava cedo e pronto para as brincadeiras do dia. De noite as sombras, metáfora da vida em si, ensinando que nem tudo é paz e luz, e, que em algum lugar da existência o mal, latente, quieto, se deixado à vontade assume formas assustadoras.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Barrancos

 Chovia forte.Ele franziu a testa forçando o olhar na direção da outra margem, longe, quase sem visão. O que ele buscava ver? Não sei. Talvez fosse só um vezo, um hábito de procurar, com chuva ou sem chuva, algo não alcançável. O fato era que lá estava ele sentado em seu banco predileto, à margem do rio, sob a forte água da chuva, suportando aquele vento que vinha do meio do rio e que entranhava em seus ossos dazendo-o tremer de frio. Antes já fizera. Pensava nela. A canoa deslizando, oblíqua, teimando em deixar-se levar pela forte correnteza, mas,subjugada e manobrada pela perícia da mulher em manusear o remo esse instrumento que há séculos ombreia, e, ajuda o caboclo em suas viagens e andanças por entre a multiplicidade dos rios amazônicos. A angustia era evidente em seu rosto. Imaginara, naquele momento eterno, a canoa virando, não resistindo ao forte banzeiro, e, a mulher debatendo-se, tentando desesperadamente emergir para a vida, mas, a força das águas imensamente mais forte puxavam-na para baixo, para suas revoltas entranhas. Apesar dos péssimos pensamentos a canoa teimava em vir em sua direção. Agora, revivia a cena. A angustia não existia porque não tinha canoa nem moça, só a lembrança do barco subindo e descendo no topo das altas ondas. Subia e logo literalmente sumia de sua visão engulida pelo vale das ondas. É como se o rio-mar dissesse: agora fico com ela... E rindo deixava a canoa subir na crista da próxima onda para logo deixa-la desabar em busca da próxima, numa brincadeira sem fim.    Era a chuva branca. Tempestade devastadora. O caboclo, encharcado, com seu chapéu de palha deixando sua aba reter água para logo deixá-la cair em cascata em seu rosto, turvando-lhe ainda mais a visão, imaginando quantas tempestades a vida lhe oferecera e a todas vencera obstinadamente, consolidando uma cultura, a cultura da sobrevivência, comum a todos os moradores da floresta indomável.    A moça morrera uns anos atrás durante o parto do neném que chorava na casinha de madeira situada, talvez com fome. Vagarosamente ele levantou-se, olhando o rio seu amigo, e, endereçou-se para a casa. Tinha que enfrentar mais um dia de sobrevivência...    

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A fluidez do charuto e da vida.

Boa Vista. O céu impecável. As estrelas brilhando, cada uma mais que a outra para si mostrarem, aparecer mais que as outras, o que dava uma visão especial aos espectadores. Mesmo para um amador, os desenhos das constelações apareciam mais nitidamente, e, naturalmente, refletia, e fazia refletir o sentimento da grandiosidade da criação. A graça com que os astros arrumaram-se era de causar muita admiração. Eu, como um desses amadores, conseguia distinguir muito pouco das formações. Deitado na rede via o cruzeiro do sul, as três Marias, algo parecido com a uma formação que eu sabia quem era mais não sabia o nome e depois de um tempo resolvi simplesmente absorver o quadro mágico do céu estrelado. Meu filho, Alexandre Filho, também absorvia este momento mágico, e, através das espirais da fumaça do seu charuto, deixava transparecer a imensa satisfação de simplesmente estar ali. Realmente o cenário é de difícil descrição. Não há em que pensar a não ser no quadro logo ali em sua frente, para quem está deitado como eu. Os dois cachorros, um bulldog inglês e um americam bull, um branco e o outro preto, entendendo nosso momento introspectivo, aquietaram-se, deitados à volta das redes, como fossem partícipes da admiração que o quadro exigia. Lá longe o uivo de um pastor alemão, alto, emprestava à cena um quê de ancestralidade, remontando à uma época bravia, de colonização, longínqua. A lua, toda exibida prateava a cidade, e, tenho certeza, mais o nosso pátio, pois, nenhum ponto do quintal até a entrada da casa estava encoberto de seus raios prateados. Os charutos, cubanos legítimos, pareciam mais ativos e alegres de estarem contribuindo com nosso prazer, estavam na metade e os assuntos, da vida e de projetos, ainda nem pensavam em dar-se por encerrado. - Alexandre, amanhã é um porvir, mas, marcado por nossos passos de agora. O tempo, essa marca mensurável, existente apenas humanamente falando, para nós os poetas e artistas que teimam em pensar realmente não existe. É-nos indiferente...; assim a noite avançava madrugada a dentro. Lá no céu a lua. Aqui o calor prateado do amor. Charutos e conversas. Sonhos a vir. Devaneios das almas. Solidificação de sentimentos. Deus abençoando a cena. Passado, presente e futuro. O bulldog, prognata, com os olhos sonolentos, talvez, desinteressado pela conversa, olhava sua silhueta refletida na enorme parede de vidro que separa a varanda da sala de visitas, deixando o tempo passar. Agora, os charutos quase mortos, nos volviam à realidade. O sono lentamente tomando conta da cena fazendo a conversa ficar mais espaçada, o corpo a pedir descanso, nos lembrava que a mágica do momento terminara e era hora de ir...