segunda-feira, 17 de maio de 2010

14 de maio.

Hoje, dia 14 de maio, é a data de nascimento de minha mãe. Se viva faria 84 anos. Acordei pensando nisso, a data, um nascimento de uma menina nos dourados anos vinte, e, como sempre costumo, retirei de minha carteira porta cédulas uma foto que impressionantemente não a deixa envelhecer, este terrível produto do tempo. O fluir do tempo é algo notadamente pernicioso. A foto, ao contrário, mostra-me todo dia a mesma imagem, o sorriso iluminando seu rosto redondo, o olhar de pose fotográfico, o porte altaneiro, a coluna ereta, o vestido caindo-lhe bem sobre o corpo bem feito, com a cintura marcada. Que momento espetacular a foto registra. Era um aniversário de uma de suas netas, uma de minhas duas filhas. Há felicidade no ar. Eternamente felicidade. Não há e não pode haver mudança, pois, a fotografia tem a particularidade, sendo curial dela própria, a eternização dos fatos, dos momentos, do congelar do fluir da vida, enfim.
Impressionante isso. Naquele momento a vida parou e toda corrupção e degeneração da vida congelaram-se ante a milagrosa força do registro. Olhando, agora mesmo, minha mente retorna àquele momento e satisfaz minha alma, talvez, só porque tenha ela transgredido a lei do tempo, que diz que o tempo não pára, não se detém diante de nada, e, assim, rio-me, sabendo que ela, minha alma, burlou a lei transformando o dinamismo do tempo em algo estático, e, portanto, não sujeito a ele, em algo parado no tempo e no espaço.
Lá está ela continuando a rir bela e jovem, como se nada existisse e apesar de tudo que aconteceu no tempo chamado antes e depois ela ainda está lá esbanjando beleza e juventude.  Naquele momento a felicidade parece ser eterna, sem começo nem fim.
É algo mágico, transcendental. A perspectiva, a veleidade de parecer natural, a luz sombria da noite, a pose deixada para a posteridade, a consciência de que a enganação é virtual, pois, de qualquer maneira o tempo continua sua fluidez, inexorável, sem paradas, a não ser aquelas magicamente congeladas nas fotos. Daí a grande importância da fotografia. Não importa se ela obedece a todos os intricados requisitos fotográficos e fotogênicos, o que realmente importa é que ela, a fotografia, nos faz viajar no tempo, para trás e para frente, de novo, indo para a data da foto e depois regressando ao tempo que se chama de presente.
Continuo a olhar minha mãe, que com seu olhar meigo, ali na foto, me incentiva a continuar nesta caminhada que ela já trilhou e brilhou e certamente continua a brilhar. 

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Dia a dia, a rotina

Era um misantropo. Habitava uma cafua perto da cidade. O lugar era de difícil acesso e muito sujo. Usava uma jabiraca que o transformava em um abaité, mas, nunca, até que se soubesse o contrário, ele, embora com seu mau aspecto, destratara ou maltratara alguém. Tinha um cheiro compatível com o mundo que escolhera viver. Era um sujeito encafuado em uma espécie de moradia úmida e mal cheirosa lá em cima do morro. Agora mesmo, diziam à boca miúda, ao chegar a seu antro, ele escorregara num capim molhado e rolara caminho abaixo o que lhe valera alguns arranhões e algumas feridas pelo corpo.
Dali, de cima, ele já presenciara muitas manobras tristes por parte de pessoas que chegavam até o sopé do morro de carrões e desciam apressados e iam direto para o barraco de um mau elemento passador de tudo que era droga que habitava ali. Há pouco presenciara a vinda de um garoto de no máximo, calculara ele, uns dezesseis anos que ansioso esfregava as mãos, num sinal claro de ansiedade. Depois de um tempo o mau elemento aparecera com algo nas mãos e passara para o jovem. Recriminava aquilo, mas, não podia fazer nada.
- Minha vida vale mais que a dos outros, pensara ele, naquele momento e nos outros que se seguiram. Uma pena. Se pudesse ao menos telefonar, mesmo anonimamente, talvez, o mau elemento não viesse a saber de sua participação na denúncia e ele pouparia a vida do jovem. Por outro lado pensara que o menino logo procuraria outro ponto de venda da droga que usava o que invalidaria sua atitude. A veleidade de seu pensamento era a mais correta possível e mais uma vez ele pensou no quanto um telefone ajudaria. Neste momento o rapazinho, pegara o pacote com sua droga e se dirigira para a rua que dava acesso á saída do morro. O movimento estava muito bom. Em poucas horas ele, o mau elemento, já atendera o décimo cliente e o décimo primeiro vinha chegando em seu carro claro, novinho em folha.
O abaité levantou-se e resoluto, agarrando-se aqui e ali em algum capim no caminho, encaminhou-se para a saída do morro. Tinha um plano na mente e a certeza que o executaria. Alguma coisa alguém teria que fazer para dar uma chance aqueles pequeninos. Imbuiu-se de poder, e, foi descendo o morro. Os guardas do transito, do tráfego, garotos, orgulhosos de poderem ali, em seu habitat, demonstrarem suas autoridades sobre a sociedade deles notaram a saída do abaité, mas, como sempre imaginaram que o mesmo iria se embriagar em algum lugar mais longe e depois dopado voltaria para sua pocilga e dormiria o sono agitado dos infelizes, dos desvalidos, dos que se fizeram misantropo.
A viatura da polícia estava como sempre no mesmo lugar. As luzes do carro estavam desligadas e os soldados dentro do carro dominavam a visão da subida do morro. Um deles avistou o abaité vindo em sua direção e não se preocupou com o homem visto sua implicação alcoólica e a degeneração na sua personalidade. Ele aproximou-se do carro e o soldado na janela do passageiro segurou a coronha da pistola pronto a puxá-la e usá-la caso fosse necessário.
- Boa noite, seu guarda.
- Boa noite.
- Gostaria de fazer uma denúncia. É a respeito de drogas. Sei quem vende e queria fazer a denúncia.
- O senhor sabe o que está fazendo, cidadão?
- Sei, sim, sinhor.
- Está disposto a ir conosco até o ponto de venda?
- Tô.
O mau elemento depois de trocar tiros com a polícia fora preso. Por uns dias o abaité imaginou ter livrado o morro de um dos maiores problemas sociais. Alegre se levantou, naquela manhã e saindo à entrada da cafua, olhando para um lado e outro, espreguiçou-se e nem viu quando os homens chegaram. Chegaram atirando e acertando diversos tiros no abaité. Ele caíra e rolara até um plano mais embaixo. Seu corpo ficara ali, descansando finalmente. O sol começara a esquentar realmente. Dormira pensando no bem que tinha feito e isto lhe fizera muito bem.
Mais embaixo o rapazola chegara e comprara sua cota e estava saindo, alegre, pensando aonde iria para usá-la. A vida continuava, fluía na rotina, na mesmice do dia a dia.