quinta-feira, 6 de maio de 2010

Dia a dia, a rotina

Era um misantropo. Habitava uma cafua perto da cidade. O lugar era de difícil acesso e muito sujo. Usava uma jabiraca que o transformava em um abaité, mas, nunca, até que se soubesse o contrário, ele, embora com seu mau aspecto, destratara ou maltratara alguém. Tinha um cheiro compatível com o mundo que escolhera viver. Era um sujeito encafuado em uma espécie de moradia úmida e mal cheirosa lá em cima do morro. Agora mesmo, diziam à boca miúda, ao chegar a seu antro, ele escorregara num capim molhado e rolara caminho abaixo o que lhe valera alguns arranhões e algumas feridas pelo corpo.
Dali, de cima, ele já presenciara muitas manobras tristes por parte de pessoas que chegavam até o sopé do morro de carrões e desciam apressados e iam direto para o barraco de um mau elemento passador de tudo que era droga que habitava ali. Há pouco presenciara a vinda de um garoto de no máximo, calculara ele, uns dezesseis anos que ansioso esfregava as mãos, num sinal claro de ansiedade. Depois de um tempo o mau elemento aparecera com algo nas mãos e passara para o jovem. Recriminava aquilo, mas, não podia fazer nada.
- Minha vida vale mais que a dos outros, pensara ele, naquele momento e nos outros que se seguiram. Uma pena. Se pudesse ao menos telefonar, mesmo anonimamente, talvez, o mau elemento não viesse a saber de sua participação na denúncia e ele pouparia a vida do jovem. Por outro lado pensara que o menino logo procuraria outro ponto de venda da droga que usava o que invalidaria sua atitude. A veleidade de seu pensamento era a mais correta possível e mais uma vez ele pensou no quanto um telefone ajudaria. Neste momento o rapazinho, pegara o pacote com sua droga e se dirigira para a rua que dava acesso á saída do morro. O movimento estava muito bom. Em poucas horas ele, o mau elemento, já atendera o décimo cliente e o décimo primeiro vinha chegando em seu carro claro, novinho em folha.
O abaité levantou-se e resoluto, agarrando-se aqui e ali em algum capim no caminho, encaminhou-se para a saída do morro. Tinha um plano na mente e a certeza que o executaria. Alguma coisa alguém teria que fazer para dar uma chance aqueles pequeninos. Imbuiu-se de poder, e, foi descendo o morro. Os guardas do transito, do tráfego, garotos, orgulhosos de poderem ali, em seu habitat, demonstrarem suas autoridades sobre a sociedade deles notaram a saída do abaité, mas, como sempre imaginaram que o mesmo iria se embriagar em algum lugar mais longe e depois dopado voltaria para sua pocilga e dormiria o sono agitado dos infelizes, dos desvalidos, dos que se fizeram misantropo.
A viatura da polícia estava como sempre no mesmo lugar. As luzes do carro estavam desligadas e os soldados dentro do carro dominavam a visão da subida do morro. Um deles avistou o abaité vindo em sua direção e não se preocupou com o homem visto sua implicação alcoólica e a degeneração na sua personalidade. Ele aproximou-se do carro e o soldado na janela do passageiro segurou a coronha da pistola pronto a puxá-la e usá-la caso fosse necessário.
- Boa noite, seu guarda.
- Boa noite.
- Gostaria de fazer uma denúncia. É a respeito de drogas. Sei quem vende e queria fazer a denúncia.
- O senhor sabe o que está fazendo, cidadão?
- Sei, sim, sinhor.
- Está disposto a ir conosco até o ponto de venda?
- Tô.
O mau elemento depois de trocar tiros com a polícia fora preso. Por uns dias o abaité imaginou ter livrado o morro de um dos maiores problemas sociais. Alegre se levantou, naquela manhã e saindo à entrada da cafua, olhando para um lado e outro, espreguiçou-se e nem viu quando os homens chegaram. Chegaram atirando e acertando diversos tiros no abaité. Ele caíra e rolara até um plano mais embaixo. Seu corpo ficara ali, descansando finalmente. O sol começara a esquentar realmente. Dormira pensando no bem que tinha feito e isto lhe fizera muito bem.
Mais embaixo o rapazola chegara e comprara sua cota e estava saindo, alegre, pensando aonde iria para usá-la. A vida continuava, fluía na rotina, na mesmice do dia a dia.

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