sábado, 6 de abril de 2013

Livro - O abaité ou o Tio Sujo.


Realmente era feio. Subia a rua de paralelepípedo carregando sua trouxa, alocada às costas. Era uma cena impressionante, pois, a trouxa era amarrada em um cabo de vassoura, de madeira, e, depositado aos seus ombros, e, ele se vestia com um manto pútrido de pano de saco, negro pelo uso, oleado e com uma aparência sem imitações. Normalmente as crianças da rua estavam ou tinham acabado de sair às calçadas para brincarem em conjunto. Lá pelas tantas um ou outro gritava lá vem o tio Sujo. Era uma correria para se esconder, mesmo nas casas alheias, tal o medo que tal criatura impunha. Não usava sandálias ou sapatos. Descalço andava o dia todo, mas, naquela hora sem falta corria para o canto de nossa rua, Leonardo Malcher, confluência com a Ferreira Pena, para depois de agasalhar seus pertences em lugar seguro, não de roubo, mas, de água, se por um acaso chovesse, ele abria os braços os deixando como se estivera numa cruz e arremessava seu corpo contra o muro da casa de esquina. Várias e várias vezes. Era um exercício diário de autopunição. Com o tempo o muro deixou-se ficar com suas impressões. Quem olhasse saberia de haver ali uma espécie de cruz. Ele não se martirizava somente se jogando, de costas com os braços abertos, não. Os carros passavam e todos olhavam para o tio Sujo a se esmurrar no rosto com toda força. Eram socos bem dados, certeiros, que durante o tempo de uso acabou por deformá-lo. O nariz largo de nascença agora era bem mais, sem a proteção da cartilagem do meio, como se houvera um afundamento bem no meio do seu nariz. Passava horas e horas ali naquela punição que parecia não ter fim.
Passei, eu mesmo, imaginando o que levara o tio Sujo, como os meninos o chamavam a cometer estes desatinos contra ele mesmo. Que tipo de culpa carregaria um homem cujo destino era de, como os monges da idade média, opus Dei, penitência e mortificação corporal? Que havia de tão horroroso naquela vida a ponto do flagelar-se ser uma normalidade diária?
Muitos anos se passaram e a molecada na rua, lá pela tardinha a gritar:
- Lá vem o tio Sujo, mistura de monstro e de ser humano, na essência necessitando amor, que pelo que transparecia a vida houvera negado a ele.
Nunca mais o vi, ou ouvi falar dele. Um dia desses passei de carro pelo local. Pareceu-me ver ainda a marca da cruz, apesar da pintura do muro. Não sei se era mesmo ou se fosse pintura de minha imaginação.
Acelerei o carro. O muro ficou, testemunha imóvel, inalterável, do sofrimento daquele homem.
- Lá vem o tio Sujo, acelerei mais o carro.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Livro - A Introdução.


Queria ter o dom, magnífico, dos grandes escritores. Aqueles que lapidam um texto como um escultor lapida uma pedra ou madeira. Há aqueles que esculpem em madeira de lei, boa madeira, dura, inflexível, e, com dores criam maravilhosas odes, textos incríveis feitos com enorme facilidade; também há os que produzem em madeira menos nobre, não requerendo para isso instrumentos sofisticados, e, na simplicidade do manejo, com dificuldade conseguem escrever mesmo na maciez do objeto. Sou dos que manejam textos como que esculpindo em madeira mais leve, menos nobre, mais fácil de manejar, aquelas que de tão flexível me deixam esculpi-las com canivetes ou mesmo com instrumentos mais rústicos, sempre necessitando de uma musa, uma o que de linda faça-me sonhar sonhos que acabam por vir a tomar forma, então, escrevo escrita moída e remoída nos sofrimentos e alegrias da vida.
Os caminhos tortuosos da vida, sempre dinâmicos, me fazem sentir uma espécie de, ao mesmo tempo, ansiedade, por momentos há vir, e, nostalgia por momentos que já foram, já passaram, e, que, certamente não voltam mais deixam-me com saudades e vontade de retornar à época, e, às vezes retomar caminhos que poderiam ter sido melhores, onde a escultura poderia ter sido melhorada. O tempo em sua inexorabilidade, em sua ida e vinda, me deixa duas únicas alternativas de tempo: o passado e o futuro. O presente já não é nesse momento e só existe como forma de generalidade, por exemplo, nesta época presente, diz-se de uma década, de uma geração, de um século, mas, na realidade, pontualmente ele não é, não existe por já ser passado, como em Cantão que ao descrever o percurso de uma flecha disparada de um arco na posição A avança lentamente e cada milímetro ganho, na direção B, mostra o presente, o passado e o futuro, onde o presente é tão passageiro que não existe tão real quanto o passado e o futuro.
  Conheci minha musa há tempos atrás. Pueril época onde os pensamentos eternizavam-se projetando para o futuro formas esculpidas, intactas, viajando no tempo e nunca si desgastando; onde o tempo jamais teria acesso e nunca a  corrosão, a destruição chegaria, alcançaria-a. Essa etéreo ser, nunca corrompido, como Dulcinéia do Quixote, sempre linda, sempre esperando, sempre lá no lugar intacto, maravilhoso, eterno de minha mente. Ela me persegue até hoje, e, lá-se vão sessenta e tantos anos, e, ela em sua paciência infinita espera, linda, num tempo irreal, incompreensível que não existe.
A essa musa, inspiradora de tudo na vida, dedico esta obra, produto desse encantamento, desse pensar, projeção de todos os momentos que tenho vivido, seja observando o ser humano em seu comportamento, seja vivenciando os mesmos vezos humanos, os mesmos esteriótipos, os mesmos "vivendo como nossos pais...", de Belchior, cujo conteúdo tem de tudo, desde prazer até tédio, ócio, trabalho, ciúmes, ódio, mas, nunca descartando o Amor em suas manifestações divinas, sem esconder a veleidade de acerto, sem ter medo de sentir saudades.
À Socorro, minha esposa e companheira, lá se vão tantos trinta e nove anos de convivência, de dor compartilhada, de venturas mil, de acertos e erros, da compreensão de que a vida é "assim mesmo", de sonhos frustrados, de sonhos realizados, de um por vir delicioso e maravilhoso, de cheiro de terra molhada, de ventos ou brisas do rio, de cheiro de flores, de choros contidos ou não, de querer fazer sem poder, de realizar impossibilidades, enfim, de simplesmente ser. A esta criatura, de rara inteligência, de raro compreender, de raro e maravilhoso conviver, por suas posições ante as desordens próprias de homens, que vão desde a desarrumação da casa, lugar intocável para as mulheres, até o emocional carente, sempre volúvel, sempre à procura não sei de que, mas, sabendo seu lugar na História e no mundo, dedico total, meu ser e este pequeno livro de anotações.
Aos meus filhos, Alexandre Filho, Maysa e Gabriela, Gabi, sempre intensamente dedico meu coração e minha vida como tenho procurado fazer até agora, e, aos meus genros Leonardo e Heitor que entraram para o "time". Por final à Natássia, minha nora, única, a quem tenho profunda afeição e pela qual tenho dedicado, com honra e prazer, parte de minha vida.
Aos meus netos, Alexandre Neto, Enzo, meu pequeno e eterno jogador de futebol, talento indiscutível, e, ao Davi, filhos de Natássia. Também aos filhos de Gabriela: João Gabriel e Guilherme, que ainda bebê vai ganhar um irmãozinho ou irmãzinha, tão carinhoso...