quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O abaité ou lá vem o Tio Sujo.

Realmente era feio. Subia a rua de paralelepípedo carregando sua trouxa, alocada às costas. Era uma cena impressionante, pois, a trouxa era amarrada em um cabo de vassoura, de madeira, e, depositado aos seus ombros, e, ele se vestia com um manto pútrido de pano de saco, negro pelo uso, oleado e com uma aparência sem imitações. Normalmente as crianças da rua estavam ou tinham acabado de sair às calçadas para brincarem em conjunto. Lá pelas tantas um ou outro gritava lá vem o tio Sujo. Era uma correria para se esconder, mesmo nas casas alheias, tal o medo que tal criatura impunha. Não usava sandálias ou sapatos. Descalço andava o dia todo, mas, naquela hora sem falta corria para o canto de nossa rua, Leonardo Malcher, confluência com a Ferreira Pena, para depois de agasalhar seus pertences em lugar seguro, não de roubo, mas, de água, se por um acaso chovesse, ele abria os braços os deixando como se estivera numa cruz e arremessava seu corpo contra o muro da casa de esquina. Várias e várias vezes. Era um exercício diário de autopunição. Com o tempo o muro deixou-se ficar com suas impressões. Quem olhasse saberia de haver ali uma espécie de cruz. Ele não se martirizava somente se jogando, de costas com os braços abertos, não. Os carros passavam e todos olhavam para o tio Sujo a se esmurrar no rosto com toda força. Eram socos bem dados, certeiros, que durante o tempo de uso acabou por deformá-lo. O nariz largo de nascença agora era bem mais, sem a proteção da cartilagem do meio, como se houvera um afundamento bem no meio do seu nariz. Passava horas e horas ali naquela punição que parecia não ter fim.
Passei, eu mesmo, imaginando o que levara o tio Sujo, como os meninos o chamavam a cometer estes desatinos contra ele mesmo. Que tipo de culpa carregaria um homem cujo destino era de, como os monges da idade média, opus Dei, penitência e mortificação corporal? Que havia de tão horroroso naquela vida a ponto do flagelar-se ser uma normalidade diária?
Muitos anos se passaram e a molecada na rua, lá pela tardinha a gritar:
- Lá vem o tio Sujo, mistura de monstro e de ser humano, na essência necessitando amor, que pelo que transparecia a vida houvera negado a ele.
Nunca mais o vi, ou ouvi falar dele. Um dia desses passei de carro pelo local. Pareceu-me ver ainda a marca da cruz, apesar da pintura do muro. Não sei se era mesmo ou se fosse pintura de minha imaginação.
Acelerei o carro. O muro ficou, testemunha imóvel, inalterável, do sofrimento daquele homem.
- Lá vem o tio Sujo, acelerei mais o carro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário